Em cada fase da minha vida predominou um nome. Na minha infância, era chamada de Karol, como sou chamada até hoje por familiares. Na adolescência, momento de negação daquilo que é externo e de definição daquilo que você está se tornando, comecei a ser chamada de Ana. Neste momento, estou começando a sentir uma necessidade maior de ser chamada pelo nome que escolhi há uns 7 anos: Anysha. Como uma roupa, parece que só agora esse nome está nas minhas medidas, sem precisar de ajustes. Esta reflexão é sobre o que mudou em mim e, principalmente, na minha dança.
Entre
idas e vindas com a dança do ventre, que eu comecei quando tinha 13 anos,
apenas agora estou começando a entender por que danço e a resolver
algumas crises que me fizeram parar ao longo dos anos.
Desde
cedo tive a oportunidade de conhecer melhor meu corpo, de movimentar a região
pélvica e de estar em círculos de mulheres, o que despertou um pouco do meu
poder e da noção e necessidade de liberdade, mas também desencadeou processos
dolorosos que eu não compreendia. Para as minhas alunas, sempre tentei passar o
sentido sagrado da dança e daqueles momentos, mas a verdade é que, em mim, não
encontrava muita certeza do que era esse tal de “sagrado feminino” e não
associava as dores que vinham e os conflitos pelos quais passava ao início de um
processo de cura. Não compreendia que todo aquele sofrimento vinha de
movimentos corporais que acessavam feridas do feminino, de não aceitação da
minha própria beleza e da beleza das outras, de movimentação de uma poderosa
energia... E, naqueles momentos, não tive orientação no sentido de tratar essas
feridas com outros métodos terapêuticos.
Achava
bonitinho o discurso de dança do ventre como ferramenta de cura e de harmonia
entre as mulheres, mas, apesar do processo interno que acontecia devagar,
percebia que, de forma geral, isso estava muito distante daquele meio de ego,
competição, maldade… Precisava de uma reconexão comigo mesma pra reencontrar
sentido na dança.
Não
foi nenhuma professora específica, nem nenhum certificado de alguns milhares de
reais que me fizeram ter certeza de que a dança sempre faria parte da minha vida
e que aquela era a forma de conexão com o divino que mais combinava comigo.
Neste
ano, depois que passei a conhecer, viver e estudar a sexualidade pelo viés do Tantra
e depois que tive a minha primeira vivência com a Ayahuasca, estou conseguindo
fazer as conexões que faltavam entre tudo o que me faz SER.
Algumas pessoas próximas e amadas, que conhecem meu lado crítico e “materialista”, ao me ouvir falar dessas coisas, provavelmente vão pensar: “num acredito em nada disso”. Eu também não! Rsrs
Não precisei fazer força pra acreditar em nada, apenas passei a sentir, como se tivesse levado um soco
na cara… na verdade, senti orgasmos que me levaram a lugares que não conhecia...
O
fato é que tudo isso tem explicações biológicas, é tudo muito concreto. No
livro Vagina: uma biografia, a Naomi Woolf explica como a região pélvica é o
início de caminhos neurais, que enviam seus impulsos à medula espinhal e ao
cérebro, que, então, envia novos impulsos de volta, por meio de outras fibras,
nos mesmo nervos. Há muito mais redes neurais ligando a pelve da mulher ao
cérebro do que redes que vão do pênis à medula espinhal. A partir disso,
percebemos o quanto a nossa pelve, nosso ventre, nossa vagina, está ligada ao
cérebro. Ou seja, mesmo sem ter essa intenção, a dança do ventre (e aqui coloco
o tribal como uma dança do ventre) tem um poder absurdo sobre a nossa saúde
mental.
O
tantra percorre um caminho semelhante, buscando a cura mental, o empoderamento
feminino – juntamente com um crescimento espiritual – através de ações físicas.
Isso tocou no ponto que estava muito fragilizado dentro de mim. Por muito
tempo, deixei de lado qualquer trabalho espiritual e coloquei um pano nos
conflitos que apareciam com os movimentos e vivências de dança e de libertação
pessoal (na verdade não um pano, foi um antidepressivo). Atualmente, além do
tantra, passei a buscar um desenvolvimento integral com práticas de yoga voltadas mais para o equilíbrio do que para a
flexibilidade, agilidade e força, com treinos de pompoarismo e, quando sinto o
chamado, busco orientações e limpeza com a medicina da ayahuasca. É um caminho
sem volta… um caminho prazeroso de busca por uma existência plena.
O resultado de todo
esse processo é que, hoje em dia, pra mim, não faz muito sentido um trabalho
espiritual que desconsidere o corpo, que o trate como uma simples casca ou,
pior, como fonte de distração e pecado. A dança também não faz mais sentido se
não for um trabalho voltado para desenvolvimento total da pessoa, sua saúde
física, mental e espiritual (não seria tudo isso lados de um mesmo triângulo?).
Mas
isso tudo continuaria no plano do discurso se eu continuasse a viver a dança da
mesma forma, se não passasse a evitar certas coisas e a exercitar outras e
continuasse reproduzindo uma prática patriarcal e mercadológica da dança.
Mas
isso tudo continuaria no plano do discurso se eu continuasse a viver a dança da
mesma forma, se não passasse a evitar certas coisas e a exercitar outras e
continuasse reproduzindo uma prática patriarcal e mercadológica da dança.
Vivemos
em uma sociedade patriarcal, em que as mulheres são ensinadas a competir umas
com as outras e a cultivar o ego. Vivemos em sociedade com uma lógica de
mercado, em que o corpo precisa ser produtivo, útil; no caso da dança, o corpo
precisa ser perfeito e servir para inflamar o ego, pois o ego é o que dá lucro.
Para isso, a técnica precisa ser impecável e os cabelos (ou o cambret) precisam
estar perfeitos.
O meio da dança do ventre é o que é porque está dentro dessa sociedade.
Praticamos uma dança oriental, na maioria das vezes, sem a sabedoria oriental.
A
partir dessa concepção da dança como um prática integrativa, ando evitando
certos grupos e situações. Sempre me senti mal quando me vi dentro delas, mas
achava que era um problema meu (não deixa de ser) e não simplesmente algo
destrutivo, que não cabia na minha forma de pensar. Sempre saí dessas situações
como “a estranha” ou “a sacana”, pois nunca conseguia explicar bem o que me
fazia mal. Acho que estou começando a entender.
Os
questionamentos e as conclusões que desenvolverei aqui são passíveis de
mudança. As faço no lugar confortável de quem, financeiramente falando, não
vive de dança (o que, em alguns momentos, torna-se um lugar desconfortável). Por
isso senti a necessidade de compartilhar, para agregar pontos de vista a esse
processo que estou vivendo:
1-
Será que sou boa o suficiente para
me apresentar?
Há
meses venho me questionando sobre quais elementos tornam uma pessoa apta para
começar a se apresentar. Vejo colegas que ficam se cobrando, sem querer se
apresentar, eu mesma passei anos sem me sentir preparada pra voltar aos
“palcos”. Técnica, sem dúvida, é bem importante. Tanto que estou travando uma
verdadeira guerra contra minhas paixões boêmias para uma vida mais regrada e
disciplinada (acho que ainda estou perdendo a batalha rsrs).
Mas
quando chega na discussão sobre perfeição em palco, fico um pouco confusa até
onde é sadio exigir essa perfeição na dança do ventre/tribal.
Por
que diferencio dança do ventre de outras danças? Primeiro, porque é a única
dança que pratico há treze anos, não podendo falar com propriedade de outras.
Depois porque estamos falando de danças que mexem diretamente com chakras que
outras expressões corporais não movimentam (por toda explicação biológica que
já citei), Como, agora, está muito forte o sentido sagrado da dança e a sua
importância enquanto ferramenta terapêutica, fico me perguntando se cobrar a
perfeição de uma pessoa não acaba sendo muito ofensivo à sua saúde.
Sentimos que o quadril, as
ancas ou a região baixa do corpo, onde estão localizados dois importantes
Chakras ( vórtices energéticos do corpo sutil), é um lugar bastante poderoso
para as mulheres. Disfunções nestes chakras podem nos levar a ter medo da
diversão, do prazer e limitar nossa livre expressão a ponto de reprimir a nossa
própria personalidade. Uma
dança que envolve todas essas questões pode ser encarada de forma tão rígida?
Isso eu falo do ponto de vista de uma bailarina, que se cobra muito e acaba
cobrando muito dos outros. Vejo que falta gentileza em muitas mulheres e em
muitos homens que dançam, tanto consigo mesmo, quanto com seus colegas.
A
resposta que encontrei para mim mesma e que estou trabalhando para não me
maltratar foi: não. Se ser bailarina profissional é buscar essa perfeição e não
sentir prazer com menos que isso, faço questão de fazer como disse Osho e não
me maltratar como a personagem do filme Cisne Negro:
“Seja
comum, seja simples, seja você quem for. Não há necessidade de ser importante,
a única necessidade é de ser real. Ser real é existencial. Ser importante é
viagem do ego”.
Houve
um tempo, em uma crise de depressão, que não conseguia gostar de nada que eu
fazia. Achava minhas performances fracas, até que deletei todos os meus vídeos
de todos os backups que tinha. Isso porque meus braços não estavam bons, eu
poderia ter sido melhor, tinha errado a coreografia… Eu deixei de amar boa
parte da minha existência porque não havia ainda atingido o nível que achava
que devia atingir (e as críticas pouco construtivas de pessoas que tinham ainda
menos técnica ainda acabaram me influenciando também).
Vejo
meninas com uma insegurança enorme de dançar porque não são perfeitas e isso me
preocupa muito. Quando você deve se sentir apta para dançar? A resposta que eu me dei foi: vá
dançando… o corpo tem uma memória, então se você treinar e abrir o corpo para a
técnica, ela aparecerá para o público. Quando sentir que tem o que mostrar,
quando amar ver seu corpo fazendo aqueles movimentos, acho que saberá que
chegou a hora.
2) Não vejo mais sentido em “shows de GALA”
Fico
aliviada em ver que saiu um pouco de moda os chamados shows de gala, apenas com
as “estrelas” dos eventos. Isso porque toda vez que me deparo com eventos que
separam os bailarinos normais, que estão pagando para ter quatro minutos de
palco e os que são especiais, convidados e exaltados, fico me sentindo muito
mal. Não é recalque (rs), mas, além da ideia estranha de separar os bailarinos
por “classe”, já me deparei com apresentações em mostras que, tecnicamente,
poderiam perfeitamente estar em um palco “gala”. Pessoas que precisam ser
vistas, que têm um potencial e um trabalho incrível. Mas o que ocorre quando há
essa separação? É dado muito mais atenção e importância a um show que rotularam
como “melhor”, enquanto que no outro vão apenas os familiares e amigos dos
bailarinos e não é dada a devida importância a trabalhos bons, bonitos e
ousados. Não há uma verdadeira troca e, com isso, todos perdem: tanto os
bailarinos da mostra, que não têm a atenção devida e o contato com pessoas que
admiram, quanto os bailarinos que já possuem mais tempo de dança, que não têm a
oportunidade de se abrir para o novo e ver belíssimas apresentações
Geralmente,
a explicação para tal separação é a quantidade de participantes. Mas dividir os
shows por estilos tornaria tudo muito mais bonito e dinâmico para o público.
Contudo,
ainda percebo que alguns bailarinos têm medo de não se destacar em alguns
eventos, então sentem necessidade de criar toda uma atmosfera que os coloquem
em destaque. Mas quem realmente tem a segurança e não tem medo de não ser a
atração da noite, dança, com prazer, no mesmo palco que outras pessoas que não
têm tanta experiência. Na verdade, sentem até prazer de ver uma cena se
renovando... Esses, sim, têm minha admiração.
Eles não precisam de estrelinhas. Eles são estrelas naturalmente.
Ou,
se a intenção for fazer um show com uma qualidade técnica mais definida, com
uma temática mais “amarrada”, não tratar a mostra como um favor. Já passei por
situações em que paguei caro para ser jogada em um palco e não ser acolhida nem
receber a atenção devida por parte dos organizadores do evento e dos outros
participantes.
3) Lidar com um
público “exigente”
Mas
voltando à perfeição… você precisa realmente dançar sempre perfeitamente bem?
Você precisa ser tão rígida com si mesma? Pior… o público, porque pagou por um
show, realmente tem o direito de cobrar um robô que não tem problemas?
Lembro
de uma apresentação em que um bailarino fantástico dançou com umas taças em uma
bandeja e todas (digo todas) as taças caíram. Ele se desconcentrou um pouco, ainda
tentou recolher umas taças, mas depois voltou a dançar porque o público foi quem deu
um show. Aplaudiu, deu força para ele continuar, seguiu a música com palmas,
abraçou e deu muito carinho para o bailarino. Este, depois, teve uma atitude
linda, não de desconsiderar aquela apresentação, mas de agradecer o carinho e
colocar as fotos da apresentação. Ele sentiu amor por aquele momento, que foi
realmente lindo.
Eu
quero fazer uma boa apresentação, mas se,por acaso, algo não sair como o
previsto, deveria apenas pensar: “acontece!” Porque somos humanos e dançamos
algo que mexe com nossa emoção, com pontos energéticos.
E
se o público for do tipo que está ali pra rejeitar os meus possíveis erros, pra
falar mal de mim depois, sinceramente… Essas pessoas não estão prontas ainda
pra apreciar o poder das ancas.
Outra
coisa que estou trabalhando em mim é tratar cada apresentação como o resultado
do que eu estou vivendo. Ali vou mostrar toda a técnica que estou treinando,
mas talvez também mostrar as olheiras de não conseguir dormir direito, a tensão
nos ombros por estar tentando carregar o mundo nas costas, um movimento pouco
fluido por eu ter chegado ao meu limite naquele dia. E o público, nesse
momento, é meu amigo, meu companheiro nesse caminho. Se ele se torna um crítico
sem respeito, eu não vou negar todo o meu trabalho para me entristecer com seu
julgamento.
4) Quando a arrogância é maior que a técnica.
Atualmente,
ando me observando e exercitando mais a gentileza comigo e com os outros. Acontecia
de passar um show vendo os defeitos dos bailarinos, até rindo de alguns. Esse
hábito tornou-se comum quando passei a me apresentar com companhias de dança
que tinham essa cultura.Também vejo muitas professoras (com uma frequência
assustadora) citarem, de forma sarcástica, exemplos de performances que não
estavam dentro de seus padrões, para mostrar o que é certo. Isso é necessário?
Essas pessoas que estão sendo ridicularizadas aprenderão algo com essa atitude?
Fazer isso serve para mais alguma coisa além de inflamar seu próprio ego?
Ou...
Quem nunca comparou o posicionamento dos bracos das alunas com braços de tiranossauro rex?Já pensou que alguma aluna
pode estar dançando com aqueles braços e, percebendo isso dessa forma
agressiva, fique se achando ridícula e alimente um medo ainda maior de se
apresentar?
Ou...
aqueles exemplos de passos que foram ensinados errados por algumas professoras.
Se alguém ensinou um movimento de um forma errada, não é ridículo. Podia ser
eu, podia ser você, professora, que agora está tirando onda. Alertar para um
erro é diferente de desconsiderar o trabalho de pessoas que estavam querendo
transmitir um conhecimento, mas que, infelizmente, não tiveram acesso a uma
fonte mais confiável. Principalmente no que se refere ao tribal. Apenas hoje os
fundamentos estão mais claros e as dúvidas estão sendo mais facilmente tiradas.
Mas até pouco tempo atrás, o Brasil experimentava esse estilo de forma até
empírica e, por isso, muita coisa foi feita sem um conhecimento sólido.
Se
alguém dançou algo que você não considerou bom, que achou ridículo, tudo bem.
Não estou dizendo que devemos achar tudo lindo e perfeito, mas não vai mudar
nada ficar comentando isso para outras pessoas. Isso apenas, além de ser antiético, alimenta a cultura de
competição dentro da dança.
Se
você é uma bailarina foda, parabéns!! Admiro muito e estudo muito seus
movimentos! Mas se não, parabéns também! Cada apresentação demanda treino,
energia, suor, dinheiro e é fruto de um processo criativo pessoal. Isso é
divino! Vou ver seus vídeos, suas apresentações e acompanhar sua dança e sua
evolução. E também vou admirar movimentos que você faz muito melhor que grandes
bailarinas. Todo mundo tem algum movimento que encaixa perfeitamente em seu
corpo e em sua personalidade.
Mas
se você entra no palco pra dizer “olha como sou perfeita” e fala mal das
colegas que não chegaram ao seu nível… não dá mais. Minha paciência para
estrelas desse tipo acabou.
Enfim,
viver a dança como uma ferramenta de conexão com o divino tem tornado minha
técnica muito mais apurada (pois agora meus treinos são bem diferentes) e estão
me distanciando de certas posturas na dança. Isso não me faz pior nem melhor, e
a ideia de compartilhar é justamente abrir possibilidade para ser questionada.
Mas está me fazendo mais feliz comigo e com meu corpo. Além disso, está,
naturalmente, me aproximando de profissionais e de espaços de dança que têm
essa visão de dança e que espalham essa sabedoria pelo Brasil. Graças aos
deuses, há grandes profissionais que estão há anos vivendo a dança, e da dança,
dessa forma.
Kilma Farias - PB |
Cito aqui minhas queridas mestras Kilma Farias, Ju Marconato,
Taruni Dasi (que, em um workshop de dança indiana, abriu minha mente para essas
questões). Também sei que as bailarinas Marília Botton Lins e Michelle Fritsch
têm trabalhos sólidos e lindos com dança e sagrado feminino e que a bailarina
Aysha Almeé também é terapeuta tântrica.
Essas e muitas outras bailarinas me alimentam ainda mais com a certeza de que a
dança é, potencialmente, uma ferramenta de transformação.