Em
uma noite de domingo, depois de muitas cervejas com a família,
fiquei sabendo que umas conhecidas de uma conhecida minha (nunca
subestime o poder que a bebida
internet tem de conectar as pessoas), ao assistiram um vídeo meu no
youtube, fizeram um comentário cruel, que me levou a pensar
seriamente sobre o tema e criar uma série de conexões.
“Se
ela quiser seguir na dança, vai precisar emagrecer”.
Tomei
até um susto porque, apesar de, na época, estar insatisfeita com
meu corpo e com as mudanças pelas quais ele passou nos últimos anos
(na verdade, eu estava insatisfeita com os últimos anos e isso
estava e o meu corpo estava refletindo esse sentimento), nunca me
considerei gorda, tendo até vergonha de ficar reclamando das minhas
medidas, por achar que meu corpo apenas não se enquadra nos padrões
de beleza vigentes. Além disso, há um ponto que para mim
parecia óbvio: não há
um corpo ideal para a dança.
Momentos depois, percebi que não é tão óbvio assim, inclusive
para mim. Provavelmente muitas mulheres não se permitem nem
experimentar a dança por não se encaixarem nos padrões de beleza
estabelecidos. Lembrei de quantas vezes ouvi, de amigos e familiares,
comentários maldosos e sarcásticos, sobre mulheres mais velhas e/ou
gordas que dançavam nos mesmos eventos que eu. Admito
que sempre fui muito desatenta a questões que envolvem gordofobia
na dança. Me consolo com a desculpa de que era muito ingênua para
pensar que a dança, principalmente a dança do ventre, não
escapasse da tirania da corporeidade perfeita que assola nossa
sociedade.
“O
corpo é também capital. E na sociedade de imagens, uma poderosa
moeda de troca. Os apelos estão em toda parte. Na mídia, nas
vitrines, no mundo virtual, nas conversas. Os olhares são de
cobrança. ‘É preciso ser belo’! E para isso ter um corpo magro,
esbelto e sarado”.1
Essa
foi a preocupação da bailarina Carol Andrade, que em 2015, em
Pernambuco, apresentou o espetáculo “Que Corpo é Esse?”,
expondo a pressão social pela qual passava e levando o público a
pensar, discutir e desconstruir o estereótipo da bailarina com
medidas mínimas.
Cena do espetáculo “Que Corpo é Esse?”. Retirada do site:
<http://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/2015/05/27/danca-questiona-padroes-de-beleza>
|
"O
trabalho começou em abril de 2014, como uma inquietação minha. Nas
viagens com a companhia de dança que participo, fui percebendo que
as pessoas nunca achavam que eu era bailarina, pensavam que era da
equipe técnica, porque meu corpo não é como o das outras
bailarinas. Fui observando que existe um estereótipo da bailarina
magrinha e que quando eu dizia que era professora de dança as
pessoas olhavam de forma diferente"2,
contou Andrade.
Essa
não é uma questão recente e talvez seja uma das mais presentes no
cotidiano e na carreira das bailarinas e dos bailarinos. No artigo Do
Ventre ao Corpo: Considerações sobre corporeidade, dança do ventre
e gênero,
Cínthia Nepomuceno e Roberta Matsumoto fazem um pequeno resgate
histórico da relação entre corpo perfeito e dança.
“Os
intérpretes profissionais de dança, desde o surgimento dos
primeiros professores dessa área, quando da fundação da Academia
Real de Dança, na França, em 1961 (moura, 2000: p. 81), eram
tratados como instrumentos, cujos corpos necessitavam ser treinados e
educados para que pudessem responder às necessidades das composições
coreográficas. Essa visão vem sendo questionada e a figura do
bailarino passou a ser, recentemente, valorizada como agente da
dança, um ser que pode contribuir como cocriador, junto ao
coreógrafo, um ser capaz de pensar, expressar e sentir”.3
Nos
últimos tempos, com a facilidade de divulgação pelas redes
sociais, algumas pessoas chamaram a atenção por romperem
estereótipos nas atividades relacionadas a corpo. Os
vídeos da norte-americana Lizzy Howell, por exemplo, tiveram mais de
100 mil visualizações, impressionando as mentes condicionadas a
pensar que o ballet é apenas para pessoas magras. A jovem, que
começou a dançar aos cinco anos, faz movimentos complexos, como,
por exemplo, uma série realizando onze fouettes em sequência.
Outro
belíssimo exemplo de ruptura com os padrões estéticos é o do grupo
cubano "Danza Voluminosa" que se apresenta desde 1996,
desafiando os padrões tradicionais da modalidade. Seu criador, Juan
Miguel, formado em dança contemporânea, fez pesquisas sobre corpos
volumosos para que se movam "esteticamente melhor", para
"fazê-los render a partir destas características",
buscando
movimentos perfeitos adaptados a pessoas obesas.
Nossas
danças "não
serão iguais às danças das pessoas magras porque temos outro peso,
outro estado físico",
explicou.
O "Danza Voluminosa" se apresentou várias vezes pelo país
caribenho, gerando reações diversas.
Nas
"primeiras
apresentações, havia um silêncio sepulcral. Alguns se levantavam e
iam embora e alguns riam (...), mas quando as pessoas viram o
desenvolvimento do nosso trabalho, como era forte e que havia por
trás de tudo um treino, um senso estético, no final aplaudiam
muito",
lembra Juan. "Conseguimos
ganhar um público",
completa.4
É
lamentável que pessoas deixem de experimentar outra prática que,
além de trabalhar alongamento e fortalecimento de forma completa, é
libertadora e ajuda no processo de autoconhecimento e na cura
integral: a yoga. As imagens de senhores indianos colocando o pé por
trás da cabeça já estão presentes no imaginário da maior parte
das pessoas quando ouvem falar de yoga. Acrescente-se a isso a
massiva propaganda nas redes sociais de famosos e famosas com corpos
esbeltos e definidos, em posições extraordinárias, desfrutando de
paisagens paradisíacas. O resultado acaba sendo o medo e o
desinteresse das pessoas em experimentar tais exercícios por
sentirem-se impossibilitadas de realizar algo semelhante. A
yogini
Dana Falsette tem um trabalho que também rompe com esse clichê e,
em seu site, há um depoimento inspirador sobre a sua trajetória:
Dana Falsette. Retirada de seu site oficial: <http://danafalsetti.com/> |
O estabelecimento de padrões para a prática de linguagens corporais faz parte de uma história de violência empreendida contra o corpo. Possue a função de condicionar o corpo e a mente para determinados tipos de atividades consideradas “produtivas” e alimentar uma indústria de remédios, de alimentos e de intervenções cirúrgicas. É lucrativo vender remédios e cirurgias e fazer as pessoas pensarem que apenas com 20 quilos a menos poderão praticar exercícios e liberarem endorfina e dopamina. Chamo esse conjunto de remédios que colocam as pessoas dentro dos padrões como a indústria da insatisfação. A dança, a yoga, os esportes de maneira geral libertam. E a liberdade não é lucrativa.
(Nos dias atuais, as doenças físicas e psíquicas causadas pelo sedentarismo chegaram a um nível oneroso para a sistema. A depressão está entre as principais causas de impedimento para o trabalho e a obesidade tornou-se um problema de saúde pública. Vemos, portanto, uma leve mudança na forma de tratar o corpo, mas esse já é outro assunto...)
“Em
tempos de ditadura da beleza, o corpo é massacrado pela indústria e
pelo comércio, que vivem da nossa isegurança, impotência e
angústia” - Paulo Moreira Leite.
A
dança do ventre poderia representar um caminho de resistência a
essas limitações psicologicamente impostas.
“Em
sua gênese, essas danças [orientais] dão tratamento diferenciado
ao corpo: na dança do vente, o corpo é sagrado, o princípio
feminino é expresso em cada movimento e nas formas do corpo. Os
atributos físicos femininos relacionados à mulher são exacerbados:
quadros largos, curvas dos seios, movimentos que evidenciem as parte
relacionada à procriação.” 6
Mas,
no geral, o que se percebe é que ela não está muito distante de
outras linguagens corporais, no que se refere à liberdade
estética. Passei por muitos desafios
quando praticava dança do ventre, principalmente quando comecei a
fazer parte de uma companhia de dança. De repente, aos 16 anos, eu
descobri que era uma pessoa com muitas falhas: Meu cabelo era seco
demais, minhas unhas encravadas e nunca estavam feitas, minhas
sobrancelhas eram “complicadas”, cheias de falhas, meu rosto
cheio de espinhas, meus seios eram pequenos... Foram tantas coisas
que hoje eu olho minhas fotos e penso como eu conseguia me achar
bonita. Sim, fui picada pelo vírus tirano do padrão de beleza. E
quando eu acho que está tudo certo... descubro que sou “gorda”.
No momento em que escrevo isso, estou com vontade de rir de tão
absurdas que são as pressões de uma vida inteira sobre o corpo de
uma mulher, mas em cada situação dessa, só consegui chorar
ao olhar para o espelho. Até que conheci o Tribal Fusion (em
2008) e vi naquele estilo uma libertação dos padrões. Uma
linguagem que abraça as diferenças e que aceita as
individualidades, já que, como bem sintetizou a bailarina,
professora e pesquisadora em dança Joline Andrade, [o tribal] “surge
como proposta de agregar diferentes manifestações e matrizes de
danças tradicionais do mundo, e busca mesclar referências e
matrizes de danças tradicionais e transpô-las numa estética
contemporânea atualizada”.7
Acredito
que para alguém que esteja mais envolvido pelo estereótipo da
bailarina do ventre, estilo clássico (quanto mais “barbie”,
melhor), os vídeos do Fat Chance Bellydance são uma espécie de
choque estético. Assistir a diversidade de corpos e idades vista em
praticamente todas as apresentações é, para mim, como respirar um
ar menos poluído de tantas exigências sobre nossos corpos.
O nome do grupo, apesar de não ter a ver com o fato das
participantes serem gordas ou magras, traz uma forte crítica aos
estereótipos e leva a um olhar diferente sobre o que é apresentado:
“Fat Chance” é uma expressão que significa “sem chance”.
Carolena Nericcio (criadora do grupo) escolheu este nome para lutar
contra o estereótipo de que as bailarinas de dança do ventre são
também mulheres fáceis. Caso alguém peça uma dança “particular”,
o nome do grupo é a resposta: Fat Chance (sem chance). Essa postura
diante do público abre o caminho para que as bailarinas assumam e
tenham orgulho de seus corpos e de seu estilo, já que não têm a
dança como instrumento de sedução, ou seja, não possuem nenhuma obrigação de
se encaixar na expectativa do mercado.
Tudo
isso é muito lindo, mas seria hipocrisia da minha parte dizer que
não fiquei (muito!) triste quando soube dos comentários a meu
respeito, pois estava passando por um período de crise com meu
corpo. Inclusive, há pouco tempo entrei na academia com o objetivo
de voltar a ter o corpo que tinha há uns cinco anos.
Nossos corpos são
diariamente violentados. Comentário maldosos nos corredores do
trabalho, nas redes, nas festas... seja para reverenciar as curvas
como um excesso de carnes potencialmente gostosas, seja para análise
milimétricas sobre cada mudança em nossas medidas. Somos
bombardeadas por um padrão e é difícil se desvencilhar disso.
Também confesso que é difícil assumir que, mesmo defensora da
liberdade das mulheres, não consigo ser mais gentil com meu próprio
corpo. “Aprendi que nossa insegurança vendem que padrões de
beleza são construções sociais, aprendi horrores. Sei muito na
teoria, mas na p´ratica. Ah! Como é difícil!”8
Mesmo
no tribal, os padrões não foram completamente desconstruídos e o
modelo Rachel Brice de beleza ainda está em voga. Ainda vejo uma
cobrança para que as bailarinas de tribal fusion sejam magras,
“estilosas”, super flexíveis. Nos workshops de ATS, celebramos a
sororidade, mas nos bastidores, ainda enaltecemos aquelas bailarinas
que têm corpos maravilhosos.
Felizmente,
campanhas publicitárias e movimentos sociais batem nesta tecla cada
vez mais, valorizando as diferenças e pregando a felicidade e o amor
ao próprio corpo, seja lá como ele for. Para quem dança e vive em
contato com a própria imagem em vídeos, fotos ou no espelho,
mexendo com pontos do nosso corpo que trazem emoções passadas,
traumas ou enaltece o ego e a vaidade, essa pode se tornar uma
questão mais complexa. Se a sociedade cria as meninas
para odiarem seus corpos, o papel das professoras de dança do
ventre/tribal é fundamental na desconstrução desses valores e no
cultivo de gentileza e sororidade. Muitas já estão trabalhando
nesse caminho, mas algumas histórias que fico sabendo de vez em
quando me assustam. Muito feliz fico em saber dos exemplos bons, mas
enquanto uma única mulher se sentir gorda e deslocada em uma aula de
dança do ventre ou de tribal fusion, acredito na importância dessa
preocupação. Com a pretensão mais de questionar e fazer pensar
do que de dar fórmulas prontas para “ser feliz e empoderada do
jeito que é”, essa reflexão leva a uma preocupação pessoal
diária se não estou me analisando e observando os outros com esse
olhar padronizado. Como, em nossa prática e em nossa vida, nadamos
contra essa corrente de corpos perfeitos na dança? O que podemos
fazer para tornar essa linguagem ainda mais receptiva e libertadora?
A propósito, o vídeo que levou a todo esse processo foi esse daqui:
Esse dia foi tão especial, tão lindo e eu estava com uma força tão grande (apesar do problema que tive com o bustiê, que queria me deixar pelada no palco rsrs), que não sei como não tive coragem de mostrar pra mais gente esse vídeo e não fui capaz de amá-lo assim que o vi, como estou amando agora...
A propósito, o vídeo que levou a todo esse processo foi esse daqui:
1
Dança questiona padrões de beleza. Postado em 27 de maio de 2015
por Ivana Moura. Disponível em:
<http://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/2015/05/27/danca-questiona-padroes-de-beleza>
2
Padrões de beleza são questionados em espetáculo em Petrolina,
PE.Publicado em 29 de maio de 2015. Disponível em:
<http://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2015/05/padroes-de-beleza-sao-questionados-em-espetaculo-em-petrolina-pe.html>
3
NEPOMUCENO, C. ; MATSUMOTO, R. K. . Do Ventre ao Corpo:
considerações sobre corporeidade, dança do ventre e gênero..
CoMA , v. 1, p. 59-66, 2004.
4
Em Cuba, dançarinas "plus size" ganham aulas de ballet
clássico. Publicada em 19 de janeiro de 2016. Disponível em: <
http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/Variedades/2016/1/577347/Em-Cuba,-dancarinas-plus-size-ganham-aulas-de-ballet-classico>
5
A Letter From Me. Dana Fasette. Disponível em:
<http://danafalsetti.com/>
6
MOURA, Kátia Cristina Figueiredo de. Essas Bailarinas Fantásticas
e Seis Corpos Maravilhosos: existe um corpo ideal para a dança?
Campina, 2001. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação,
UNICAMP. P. 187.
7
ANDRADE, Joline T. A. Processos de hibridação na dança tribal:
estratégias de transgressões em tempos de globalização contra
hegemônica. Salvador, 2011. Monografia apresentada no curso lato
senso da Universidade Federal da Bahia. Pág. 13
8
“Confesso: sou feminista mas não consigo amar meu corpo”.
Postado em 12 de janeiro de 2017 po.... Disponível em:
<http://azmina.com.br/2017/01/confesso-sou-feminista-mas-nao-consigo-amar-meu-corpo/>
Infelizmente a gordofobia está muito presente no meio da dança do ventre. Eu mesma passei por isso, por ser uma mulher BBW.
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