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domingo, 2 de abril de 2017

“Se ela quiser seguir na dança, vai precisar emagrecer”.





Em uma noite de domingo, depois de muitas cervejas com a família, fiquei sabendo que umas conhecidas de uma conhecida minha (nunca subestime o poder que a bebida internet tem de conectar as pessoas), ao assistiram um vídeo meu no youtube, fizeram um comentário cruel, que me levou a pensar seriamente sobre o tema e criar uma série de conexões.
Se ela quiser seguir na dança, vai precisar emagrecer”.
Tomei até um susto porque, apesar de, na época, estar insatisfeita com meu corpo e com as mudanças pelas quais ele passou nos últimos anos (na verdade, eu estava insatisfeita com os últimos anos e isso estava e o meu corpo estava refletindo esse sentimento), nunca me considerei gorda, tendo até vergonha de ficar reclamando das minhas medidas, por achar que meu corpo apenas não se enquadra nos padrões de beleza vigentes. Além disso, há um ponto que para mim parecia óbvio: não há um corpo ideal para a dança. Momentos depois, percebi que não é tão óbvio assim, inclusive para mim. Provavelmente muitas mulheres não se permitem nem experimentar a dança por não se encaixarem nos padrões de beleza estabelecidos. Lembrei de quantas vezes ouvi, de amigos e familiares, comentários maldosos e sarcásticos, sobre mulheres mais velhas e/ou gordas que dançavam nos mesmos eventos que eu. Admito que sempre fui muito desatenta a questões que envolvem gordofobia na dança. Me consolo com a desculpa de que era muito ingênua para pensar que a dança, principalmente a dança do ventre, não escapasse da tirania da corporeidade perfeita que assola nossa sociedade.
O corpo é também capital. E na sociedade de imagens, uma poderosa moeda de troca. Os apelos estão em toda parte. Na mídia, nas vitrines, no mundo virtual, nas conversas. Os olhares são de cobrança. ‘É preciso ser belo’! E para isso ter um corpo magro, esbelto e sarado”.1
Essa foi a preocupação da bailarina Carol Andrade, que em 2015, em Pernambuco, apresentou o espetáculo “Que Corpo é Esse?”, expondo a pressão social pela qual passava e levando o público a pensar, discutir e desconstruir o estereótipo da bailarina com medidas mínimas.


Cena do espetáculo “Que Corpo é Esse?”. Retirada do site:
<http://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/2015/05/27/danca-questiona-padroes-de-beleza>
"O trabalho começou em abril de 2014, como uma inquietação minha. Nas viagens com a companhia de dança que participo, fui percebendo que as pessoas nunca achavam que eu era bailarina, pensavam que era da equipe técnica, porque meu corpo não é como o das outras bailarinas. Fui observando que existe um estereótipo da bailarina magrinha e que quando eu dizia que era professora de dança as pessoas olhavam de forma diferente"2, contou Andrade.
Essa não é uma questão recente e talvez seja uma das mais presentes no cotidiano e na carreira das bailarinas e dos bailarinos. No artigo Do Ventre ao Corpo: Considerações sobre corporeidade, dança do ventre e gênero, Cínthia Nepomuceno e Roberta Matsumoto fazem um pequeno resgate histórico da relação entre corpo perfeito e dança.
Os intérpretes profissionais de dança, desde o surgimento dos primeiros professores dessa área, quando da fundação da Academia Real de Dança, na França, em 1961 (moura, 2000: p. 81), eram tratados como instrumentos, cujos corpos necessitavam ser treinados e educados para que pudessem responder às necessidades das composições coreográficas. Essa visão vem sendo questionada e a figura do bailarino passou a ser, recentemente, valorizada como agente da dança, um ser que pode contribuir como cocriador, junto ao coreógrafo, um ser capaz de pensar, expressar e sentir”.3
Nos últimos tempos, com a facilidade de divulgação pelas redes sociais, algumas pessoas chamaram a atenção por romperem estereótipos nas atividades relacionadas a corpo. Os vídeos da norte-americana Lizzy Howell, por exemplo, tiveram mais de 100 mil visualizações, impressionando as mentes condicionadas a pensar que o ballet é apenas para pessoas magras. A jovem, que começou a dançar aos cinco anos, faz movimentos complexos, como, por exemplo, uma série realizando onze fouettes em sequência.


Outro belíssimo exemplo de ruptura com os padrões estéticos é o do grupo cubano "Danza Voluminosa" que se apresenta desde 1996, desafiando os padrões tradicionais da modalidade. Seu criador, Juan Miguel, formado em dança contemporânea, fez pesquisas sobre corpos volumosos para que se movam "esteticamente melhor", para "fazê-los render a partir destas características", buscando movimentos perfeitos adaptados a pessoas obesas. Nossas danças "não serão iguais às danças das pessoas magras porque temos outro peso, outro estado físico", explicou. O "Danza Voluminosa" se apresentou várias vezes pelo país caribenho, gerando reações diversas.
 Nas "primeiras apresentações, havia um silêncio sepulcral. Alguns se levantavam e iam embora e alguns riam (...), mas quando as pessoas viram o desenvolvimento do nosso trabalho, como era forte e que havia por trás de tudo um treino, um senso estético, no final aplaudiam muito", lembra Juan. "Conseguimos ganhar um público", completa.4
É lamentável que pessoas deixem de experimentar outra prática que, além de trabalhar alongamento e fortalecimento de forma completa, é libertadora e ajuda no processo de autoconhecimento e na cura integral: a yoga. As imagens de senhores indianos colocando o pé por trás da cabeça já estão presentes no imaginário da maior parte das pessoas quando ouvem falar de yoga. Acrescente-se a isso a massiva propaganda nas redes sociais de famosos e famosas com corpos esbeltos e definidos, em posições extraordinárias, desfrutando de paisagens paradisíacas. O resultado acaba sendo o medo e o desinteresse das pessoas em experimentar tais exercícios por sentirem-se impossibilitadas de realizar algo semelhante. A yogini Dana Falsette tem um trabalho que também rompe com esse clichê e, em seu site, há um depoimento inspirador sobre a sua trajetória:


Dana Falsette. Retirada de seu site oficial: <http://danafalsetti.com/>
Eu sei que a yoga veio como um último recurso. Eu estava perdida, à procura de alguma coisa, e eu acho que em última análise, essa coisa era a paz. Paz e liberdade que, eventualmente, veio de um lugar de auto-estima. Lembro-me bem minha primeira aula. Eu tinha o maior corpo da sala, além de ser novata. A yoga foi difícil. Eu não conseguia ficar na posição “cachorro olhando para baixo” durante 5 respirações. Meus ombros estavam em chamas e todo o tempo parecia que para os outros não era grande coisa. Lembro-me de pensar que nunca o faria e nunca poderia ser eu. Eu pensei que meu corpo iria limitar minha prática, mas eu aprendi que só a minha mente estabelece limites.”5

O estabelecimento de padrões para a prática de linguagens corporais faz parte de uma história de violência empreendida contra o corpo. Possue a função de condicionar o corpo e a mente para determinados tipos de atividades consideradas “produtivas” e alimentar uma indústria de remédios, de alimentos e de intervenções cirúrgicas. É lucrativo vender remédios e cirurgias e fazer as pessoas pensarem que apenas com 20 quilos a menos poderão praticar exercícios e liberarem endorfina e dopamina. Chamo esse conjunto de remédios que colocam as pessoas dentro dos padrões como a indústria da insatisfação. A dança, a yoga, os esportes de maneira geral libertam. E a liberdade não é lucrativa.

(Nos dias atuais, as doenças físicas e psíquicas causadas pelo sedentarismo chegaram a um nível oneroso para a sistema. A depressão está entre as principais causas de impedimento para o trabalho e a obesidade tornou-se um problema de saúde pública. Vemos, portanto, uma leve mudança na forma de tratar o corpo, mas esse já é outro assunto...)

Em tempos de ditadura da beleza, o corpo é massacrado pela indústria e pelo comércio, que vivem da nossa isegurança, impotência e angústia” - Paulo Moreira Leite.
A dança do ventre poderia representar um caminho de resistência a essas limitações psicologicamente impostas.
Em sua gênese, essas danças [orientais] dão tratamento diferenciado ao corpo: na dança do vente, o corpo é sagrado, o princípio feminino é expresso em cada movimento e nas formas do corpo. Os atributos físicos femininos relacionados à mulher são exacerbados: quadros largos, curvas dos seios, movimentos que evidenciem as parte relacionada à procriação.” 6
Mas, no geral, o que se percebe é que ela não está muito distante de outras linguagens corporais, no que se refere à liberdade estética. Passei por muitos desafios quando praticava dança do ventre, principalmente quando comecei a fazer parte de uma companhia de dança. De repente, aos 16 anos, eu descobri que era uma pessoa com muitas falhas: Meu cabelo era seco demais, minhas unhas encravadas e nunca estavam feitas, minhas sobrancelhas eram “complicadas”, cheias de falhas, meu rosto cheio de espinhas, meus seios eram pequenos... Foram tantas coisas que hoje eu olho minhas fotos e penso como eu conseguia me achar bonita. Sim, fui picada pelo vírus tirano do padrão de beleza. E quando eu acho que está tudo certo... descubro que sou “gorda”. No momento em que escrevo isso, estou com vontade de rir de tão absurdas que são as pressões de uma vida inteira sobre o corpo de uma mulher, mas em cada situação dessa, só consegui chorar ao olhar para o espelho. Até que conheci o Tribal Fusion (em 2008) e vi naquele estilo uma libertação dos padrões. Uma linguagem que abraça as diferenças e que aceita as individualidades, já que, como bem sintetizou a bailarina, professora e pesquisadora em dança Joline Andrade, [o tribal] “surge como proposta de agregar diferentes manifestações e matrizes de danças tradicionais do mundo, e busca mesclar referências e matrizes de danças tradicionais e transpô-las numa estética contemporânea atualizada”.7
 

Acredito que para alguém que esteja mais envolvido pelo estereótipo da bailarina do ventre, estilo clássico (quanto mais “barbie”, melhor), os vídeos do Fat Chance Bellydance são uma espécie de choque estético. Assistir a diversidade de corpos e idades vista em praticamente todas as apresentações é, para mim, como respirar um ar menos poluído de tantas exigências sobre nossos corpos. O nome do grupo, apesar de não ter a ver com o fato das participantes serem gordas ou magras, traz uma forte crítica aos estereótipos e leva a um olhar diferente sobre o que é apresentado: “Fat Chance” é uma expressão que significa “sem chance”. Carolena Nericcio (criadora do grupo) escolheu este nome para lutar contra o estereótipo de que as bailarinas de dança do ventre são também mulheres fáceis. Caso alguém peça uma dança “particular”, o nome do grupo é a resposta: Fat Chance (sem chance). Essa postura diante do público abre o caminho para que as bailarinas assumam e tenham orgulho de seus corpos e de seu estilo, já que não têm a dança como instrumento de sedução, ou seja, não possuem nenhuma obrigação de se encaixar na expectativa do mercado.

Tudo isso é muito lindo, mas seria hipocrisia da minha parte dizer que não fiquei (muito!) triste quando soube dos comentários a meu respeito, pois estava passando por um período de crise com meu corpo. Inclusive, há pouco tempo entrei na academia com o objetivo de voltar a ter o corpo que tinha há uns cinco anos. Nossos corpos são diariamente violentados. Comentário maldosos nos corredores do trabalho, nas redes, nas festas... seja para reverenciar as curvas como um excesso de carnes potencialmente gostosas, seja para análise milimétricas sobre cada mudança em nossas medidas. Somos bombardeadas por um padrão e é difícil se desvencilhar disso. Também confesso que é difícil assumir que, mesmo defensora da liberdade das mulheres, não consigo ser mais gentil com meu próprio corpo. “Aprendi que nossa insegurança vendem que padrões de beleza são construções sociais, aprendi horrores. Sei muito na teoria, mas na p´ratica. Ah! Como é difícil!”8
Mesmo no tribal, os padrões não foram completamente desconstruídos e o modelo Rachel Brice de beleza ainda está em voga. Ainda vejo uma cobrança para que as bailarinas de tribal fusion sejam magras, “estilosas”, super flexíveis. Nos workshops de ATS, celebramos a sororidade, mas nos bastidores, ainda enaltecemos aquelas bailarinas que têm corpos maravilhosos.
Felizmente, campanhas publicitárias e movimentos sociais batem nesta tecla cada vez mais, valorizando as diferenças e pregando a felicidade e o amor ao próprio corpo, seja lá como ele for. Para quem dança e vive em contato com a própria imagem em vídeos, fotos ou no espelho, mexendo com pontos do nosso corpo que trazem emoções passadas, traumas ou enaltece o ego e a vaidade, essa pode se tornar uma questão mais complexa. Se a sociedade cria as meninas para odiarem seus corpos, o papel das professoras de dança do ventre/tribal é fundamental na desconstrução desses valores e no cultivo de gentileza e sororidade. Muitas já estão trabalhando nesse caminho, mas algumas histórias que fico sabendo de vez em quando me assustam. Muito feliz fico em saber dos exemplos bons, mas enquanto uma única mulher se sentir gorda e deslocada em uma aula de dança do ventre ou de tribal fusion, acredito na importância dessa preocupação. Com a pretensão mais de questionar e fazer pensar do que de dar fórmulas prontas para “ser feliz e empoderada do jeito que é”, essa reflexão leva a uma preocupação pessoal diária se não estou me analisando e observando os outros com esse olhar padronizado. Como, em nossa prática e em nossa vida, nadamos contra essa corrente de corpos perfeitos na dança? O que podemos fazer para tornar essa linguagem ainda mais receptiva e libertadora?

A propósito, o vídeo que levou a todo esse processo foi esse daqui: 



Esse dia foi tão especial, tão lindo e eu estava com uma força tão grande (apesar do problema que tive com o bustiê, que queria me deixar pelada no palco rsrs), que não sei como não tive coragem de mostrar pra mais gente esse vídeo e não fui capaz de amá-lo assim que o vi, como estou amando agora...
1 Dança questiona padrões de beleza. Postado em 27 de maio de 2015 por Ivana Moura. Disponível em: <http://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/2015/05/27/danca-questiona-padroes-de-beleza>
2 Padrões de beleza são questionados em espetáculo em Petrolina, PE.Publicado em 29 de maio de 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/pe/petrolina-regiao/noticia/2015/05/padroes-de-beleza-sao-questionados-em-espetaculo-em-petrolina-pe.html>
3 NEPOMUCENO, C. ; MATSUMOTO, R. K. . Do Ventre ao Corpo: considerações sobre corporeidade, dança do ventre e gênero.. CoMA , v. 1, p. 59-66, 2004.
4 Em Cuba, dançarinas "plus size" ganham aulas de ballet clássico. Publicada em 19 de janeiro de 2016. Disponível em: < http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/Variedades/2016/1/577347/Em-Cuba,-dancarinas-plus-size-ganham-aulas-de-ballet-classico>
5 A Letter From Me. Dana Fasette. Disponível em: <http://danafalsetti.com/>
6 MOURA, Kátia Cristina Figueiredo de. Essas Bailarinas Fantásticas e Seis Corpos Maravilhosos: existe um corpo ideal para a dança? Campina, 2001. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, UNICAMP. P. 187.
7 ANDRADE, Joline T. A. Processos de hibridação na dança tribal: estratégias de transgressões em tempos de globalização contra hegemônica. Salvador, 2011. Monografia apresentada no curso lato senso da Universidade Federal da Bahia. Pág. 13
8 “Confesso: sou feminista mas não consigo amar meu corpo”. Postado em 12 de janeiro de 2017 po.... Disponível em: <http://azmina.com.br/2017/01/confesso-sou-feminista-mas-nao-consigo-amar-meu-corpo/>

Um comentário:

  1. Infelizmente a gordofobia está muito presente no meio da dança do ventre. Eu mesma passei por isso, por ser uma mulher BBW.

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