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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Indicação de Filme: LATCHO DROM

A cultura cigana causa fascínio e curiosidade, mas a diversidade de povos e elementos culturais compreendidos pela palavra “cigano”, até pela falta de registros escritos desses povos ágrafos (de tradição oral), é de difícil compreensão.

O elo histórico que há entre os pés batendo na areia do deserto e os sapateados nas ruas da Espanha, por exemplo, é revelado, de forma poética, pelo filme Latcho Drom, de 1993.

Latcho Drom, que significa “Boa Estrada”, mistura de documentário e musical, assume a forma de viagem que, durante um ano, do verão ao outono e do inverno à primavera, acompanha diversos grupos nômades, desde a Índia até a Espanha, passando pela Turquia, Romênia, Hungria, República Tcheca, Alemanha e França, mostrando as mudanças e as permanências verificadas nas formas de expressão desses diferentes grupos.

Diferentemente do modelo de sociedade contemporânea ocidental - que associa as artes aos momentos de lazer dos finais de semana e possui uma visão mercadológica da música - para os ciganos, esta é protagonista, estando presente em todos os momentos da vida, guiando os grupos pelas estradas, expressando alegria e unindo as pessoas.


Pode celebrar a vida, mas também ser uma lamentação. Um dos episódios mais tristes de nossa história é relembrado pelo filme: o massacre nazista que dizimou milhares de ciganos nos campos de concentração. É emocionando a forma como ele termina, denunciando/exorcizando os crimes e preconceitos sofridos ao longo dos séculos.[1]

A música e a dança fazem parte do cotidiano desses povos. Homens e mulheres dançam, cantam e tocam. É como se estas fossem a linguagem universal, que liga povos que não falam as mesmas línguas e fazem parte de contextos completamente diferente. Tanto que mal há falas no filme, não sendo necessário de legendas para o entender. Nós damos tanta importância a palavras e explicações, que isso pode parecer estranho e muitas pessoas podem não ter paciência para uma obra desse estilo. Por isso, considero também um bom exercício de desconstrução.

A cena da ghawaaze que, após dançar, pega um bebê no colo e começa a amamentá-lo enquanto os outros, naturalmente, continuam conversando, cantando, tocando e dançando, talvez seja a que mais cause estranhamento quando pensamos o quanto somos acostumados com o barulho desordenado das cidades e o quanto nossos movimentos corporais cotidianos são limitados e domesticados em prol de uma produção mecânica para o sistema. Talvez por uma herança do cristianismo,para nós (de maneira geral), o prazer e a festa são encarados por nossa sociedade como algo pouco evoluído, sujo, um pecado. A mulher, mãe, tem seu papel definido na sociedade. Há uma contraposição entre seriedade e festa, entre digno e vulgar e a mulher dançando ocupa a primeira categoria.


Apesar das perseguições e do preconceito, os povos ciganos resistiram e o que conhecemos como cultura cigana não corresponde a uma forma de expressão morta, mas está sempre sendo transmitida para as novas gerações e sendo renovada. É, portanto, nas crianças onde as tradições encontram essa possibilidade de continuidade. Observando e imitando os adultos, o filme mostra como as crianças ciganas crescem com o sentimento de pertencimento ao grupo e como, através da mímeses e a partir do ensinamento dos mais velhos, absorvem os passos de danças e a forma de tocar os instrumentos. O tempo todo o filme mostra a presença de diferentes gerações participando dos rituais culturais das comunidades, o que me fez pensar em grupos que mantém suas tradições no Brasil - como os grupos de maracatu, por exemplo - e me questionar se também há, entre os jovens que nascem nesses locais, esse sentimento de pertencimento e esse desejo de manter vivas suas raízes...

Ao ver o filme, também fiz uma associação com esse movimento de retorno às nossas raízes, a nossa ancestralidade, que está ocorrendo principalmente entre as jovens de classe média do Brasil (realmente nãos sei se ocorre o mesmo em outros lugares, mas é um fenômeno que estou percebendo como crescente por aqui). A reverência ao Sagrado Feminino, a maior atenção às terapias holísticas, a procura por tornar a dança um ritual sagrado, entre outras "modas saudáveis" são frutos de anos de repressão (principalmente sexual) e de afastamento de tudo o que tem a ver com o corpo e com o feminino. Nesse escopo, está também o desejo de se reconectar à natureza. Todos esses elementos que sentimos falta, o filme evidencia como integrantes das culturas ciganas. A natureza, por exemplo, não é apenas cenário. Faz parte do elenco, sendo protagonista em músicas e dançando junto com as pessoas, como em uma cena em que folhas secas dançam guiadas pelo vento.

Sobre o diretor...

O diretor, Tony Gatlif, nasceu na Argélia, em 10 de setembro de 1948. Filho de pais franceses, Michel Dahamani – seu nome verdadeiro – é descendente de ciganos romenos, povo sobre o qual pautou a maioria de seus 16 filmes (não apenas os dirige e os escreve, como também é responsável pela trilha musical).

Ainda quero ver os outros dois filmes seus que formam uma trilogia sobre o povo cigano: “Os príncipes” e "O Estrangeiro Louco". Abaixo está uma resposta sua, em uma entrevista à Folha[2], sobre esses filmes

Tony Gatlif - Com "O Estrangeiro Louco", concluo tudo o que tinha para contar sobre os ciganos. Para fazer "Os Príncipes", contei tudo que de pejorativo vivi, desde a infância. Em "Latcho Drom", expliquei de onde vêm os ciganos, desde a Índia até a Andaluzia, por meio da música. Estava faltando contar como era a vida dos ciganos, com seus palavrões e festas, e fiz "O Estrangeiro Louco".

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