As diferentes maneiras como o
corpo e a sexualidade são concebidos e o lugar que ocupam em determinada
sociedade, assim como a sua presença no imaginário, na realidade e no
cotidiano, auxiliam o historiador na compreensão das sociedades, sejam estas
antigas ou contemporâneas. (Le Goff, 2006. LE GOFF, Jacques. Uma história do
corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.)
A forma como nos cumprimentamos,
como carregamos os objetos, os gestos que usamos para afirmar ou negar algo e
todas as chamadas “técnicas cotidianas” não são, diferentemente do que acreditamos,
naturais. Nossos gestos mais “naturais” são fabricados pelas normas coletivas,
ou seja, são expressões culturais. A forma como utilizamos e vemos nossos
corpos não é determinada, mas é profundamente influenciada por uma série de
fatores: classe etária, status social, pretensão de pertencer a determinada
classe, mensagem que se deseja transmitir e, principalmente, o tempo e espaço no
qual estamos inseridos.
Percebendo, então, o papel
central e complexo do corpo para o entendimento das sociedades, a obra História
do Corpo reúne 22 ensaios, divididos em três volumes, que trazem a história de como os
homens pensaram, trataram e sentiram o corpo, levando o leitor a compreender
melhor sua própria forma de encará-lo.
Mais de mil páginas que exploram
aspectos das sociedades europeias, do Renascimento ao século XX e que são
essenciais para a compreensão de que o corpo não é um ator passivo nem pacífico
da nossa história e que as várias formas como nossa sociedade o tratam e o
projetam têm um porquê e uma origem.
Até por cuidado metodológico, os
três volumes de “História do Corpo” não introduz suas análises para o mundo
africano ou oriental. Mas considerado que, no que diz respeito ao corpo, somos
muito influenciados pela religião cristã e pelo modo de produção capitalista,
eles podem levar-nos a perceber o quanto há de permanências (às vezes até assustadoras) e o quanto é
importante a busca pela sabedoria oriental para lidar com o corpo de uma maneira
menos cruel.
Imposições coletivas x Libertação Individual
O corpo é, ao mesmo tempo, lugar
de repressão e de libertação. Se por um lado, a modernidade representou a
“emancipação em relação às tradições e hierarquias” – com a queima de
acessórios cotidianos opressores como o espartilho – por outro, o processo
civilizador do ocidente, especialmente a partir da ruptura que ocorre no século
XVII, representou um lento trabalho de repressão, isto é, de distanciamento
do pulsional e do espontâneo.
Etiqueta, autocontrole e polidez
passam ser a regra. Dessa tentativa de domesticar o corpo surgem instrumentos
tão caros à nossa sociedade, como o garfo. O “civilizado” torna-se o homem que
sabe controlar o seu corpo e este se torna cada vez mais um motivo de vergonha,
um conjunto de sujeiras a serem escondidas.
Acrescenta-se a isto um intenso
trabalho da modernidade sobre as fronteiras do si mesmo, as pulsões, os
desejos: controle da polidez e da sociabilidade, polimento das violências,
autovigilância dos gestos no universo do íntimo. A compostura cotidiana, as
maneiras, a sexualidade, os jogos, o espaço próximo, tudo isso transformou-se.
Também neste caso, a mudanças não
se deram igualmente em todos os lugares. O primeiro volume mostra, por exemplo,
como, na Idade Moderna, os gestos de amor no mundo rural, com sua impulsão
visível, sua imediatidade e sua brusquidão, estavam longe das reverências e das
motricidades sempre mais policiadas, observadas nos rituais da corte.
Isso levou-me a fazer uma conexão entre dança e classe social. O
corpo como um reflexo das diferenças sociais. De maneira geral, percebo nas
expressões corporais das classes mais exploradas, um trabalho maior com os
quadris e uma interação mais íntima entre os corpos. Justamente por essa
cultura de controle, as elites não se permitiram (e, em menor medida, ainda não
se permitem), movimentos mais intensos, que expõe o corpo e sua natureza. O pecado é um herança cristã fortemente arraigada nas classes mais altas, que, atualmente, cultivam a necessidade de discrição e pudor.
Mente e corpo não são coisas
separadas, portanto, o corpo sujeito a normas, o corpo “corrigido”, também tem
sua consciência subjugada. Domesticar o corpo é uma das formas de tornar os
indivíduos sempre mais “dóceis e úteis.
Uma dupla tensão, para dizer a
verdade, atravessa o investimento no corpo, da Renascença às Luzes, esboçando
as primícias das visões de hoje: uma acentuação das imposições coletivas, uma
acentuação da libertação individual.
Corpo humano e Natureza
Atualmente, principalmente entre pessoas de classe média, cresce a necessidade de reconexão com elementos naturais para a saúde e o trabalho corporal. Essa ruptura entre corpo humano e natureza , que hoje traz efeitos tão negativos para a nossa saúde, deu-se apenas no século XVII. Buscou-se apagar do
inconsciente coletivo as referências a utilizações ocultas, aquelas que associam
matérias preciosas, referências aos astros e manutenção do corpo,
Na Idade Média e ainda no
Renascimento, tanto os seres quanto as coisas eram percebidos como uma
continuidade. A cosmovisão era inteiramente teocêntrica. A partir do século
XVII, há uma separação entre corpo humano e Natureza. Os corpos são imaginados independentemente da
influência dos planetas, das forças ocultas, dos amuletos ou objetos precisos.
Não que sejam definitivamente descartadas as crenças, como as da medicina
popular, dos curandeiros ou feiticeiros do campo, mas um conflito de cultura se
aviva com a Renascença, onde o corpo se singulariza.
Ler alguns artigos desses
volumes, portanto, nos dá mais instrumentos para libertar nossos corpos de
amarras tão antigas, compreendendo os valores e os motivos de nossos hábitos e
nossos conceitos.
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