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segunda-feira, 29 de maio de 2017

Indicação de Livro: História do Corpo


As diferentes maneiras como o corpo e a sexualidade são concebidos e o lugar que ocupam em determinada sociedade, assim como a sua presença no imaginário, na realidade e no cotidiano, auxiliam o historiador na compreensão das sociedades, sejam estas antigas ou contemporâneas. (Le Goff, 2006. LE GOFF, Jacques. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.)

A forma como nos cumprimentamos, como carregamos os objetos, os gestos que usamos para afirmar ou negar algo e todas as chamadas “técnicas cotidianas” não são, diferentemente do que acreditamos, naturais. Nossos gestos mais “naturais” são fabricados pelas normas coletivas, ou seja, são expressões culturais. A forma como utilizamos e vemos nossos corpos não é determinada, mas é profundamente influenciada por uma série de fatores: classe etária, status social, pretensão de pertencer a determinada classe, mensagem que se deseja transmitir e, principalmente, o tempo e espaço no qual estamos inseridos.

Percebendo, então, o papel central e complexo do corpo para o entendimento das sociedades, a obra História do Corpo reúne 22 ensaios, divididos em três volumes, que trazem a história de como os homens pensaram, trataram e sentiram o corpo, levando o leitor a compreender melhor sua própria forma de encará-lo. 
Mais de mil páginas que exploram aspectos das sociedades europeias, do Renascimento ao século XX e que são essenciais para a compreensão de que o corpo não é um ator passivo nem pacífico da nossa história e que as várias formas como nossa sociedade o tratam e o projetam têm um porquê e uma origem.
Até por cuidado metodológico, os três volumes de “História do Corpo” não introduz suas análises para o mundo africano ou oriental. Mas considerado que, no que diz respeito ao corpo, somos muito influenciados pela religião cristã e pelo modo de produção capitalista, eles podem levar-nos a perceber o quanto há de permanências (às vezes até assustadoras) e o quanto é importante a busca pela sabedoria oriental para lidar com o corpo de uma maneira menos cruel. 


Imposições coletivas x Libertação Individual

O corpo é, ao mesmo tempo, lugar de repressão e de libertação. Se por um lado, a modernidade representou a “emancipação em relação às tradições e hierarquias” – com a queima de acessórios cotidianos opressores como o espartilho – por outro, o processo civilizador do ocidente, especialmente a partir da ruptura que ocorre no século XVII, representou um lento trabalho de repressão, isto é, de distanciamento do pulsional e do espontâneo.
Etiqueta, autocontrole e polidez passam ser a regra. Dessa tentativa de domesticar o corpo surgem instrumentos tão caros à nossa sociedade, como o garfo. O “civilizado” torna-se o homem que sabe controlar o seu corpo e este se torna cada vez mais um motivo de vergonha, um conjunto de sujeiras a serem escondidas.
Acrescenta-se a isto um intenso trabalho da modernidade sobre as fronteiras do si mesmo, as pulsões, os desejos: controle da polidez e da sociabilidade, polimento das violências, autovigilância dos gestos no universo do íntimo. A compostura cotidiana, as maneiras, a sexualidade, os jogos, o espaço próximo, tudo isso transformou-se. 
Também neste caso, a mudanças não se deram igualmente em todos os lugares. O primeiro volume mostra, por exemplo, como, na Idade Moderna, os gestos de amor no mundo rural, com sua impulsão visível, sua imediatidade e sua brusquidão, estavam longe das reverências e das motricidades sempre mais policiadas, observadas nos rituais da corte.
Isso levou-me a fazer uma conexão entre dança e classe social. O corpo como um reflexo das diferenças sociais. De maneira geral, percebo nas expressões corporais das classes mais exploradas, um trabalho maior com os quadris e uma interação mais íntima entre os corpos. Justamente por essa cultura de controle, as elites não se permitiram (e, em menor medida, ainda não se permitem), movimentos mais intensos, que expõe o corpo e sua natureza. O pecado é um herança cristã fortemente arraigada nas classes mais altas, que, atualmente, cultivam a necessidade de discrição e pudor. 
Mente e corpo não são coisas separadas, portanto, o corpo sujeito a normas, o corpo “corrigido”, também tem sua consciência subjugada. Domesticar o corpo é uma das formas de tornar os indivíduos sempre mais “dóceis e úteis.
Uma dupla tensão, para dizer a verdade, atravessa o investimento no corpo, da Renascença às Luzes, esboçando as primícias das visões de hoje: uma acentuação das imposições coletivas, uma acentuação da libertação individual. 

Corpo humano e Natureza

Atualmente, principalmente entre pessoas de classe média, cresce a necessidade de reconexão com elementos naturais para a saúde e o trabalho corporal. Essa ruptura entre corpo humano e natureza , que hoje traz efeitos tão negativos para a nossa saúde, deu-se apenas no século XVII. Buscou-se apagar do inconsciente coletivo as referências a utilizações ocultas, aquelas que associam matérias preciosas, referências aos astros e manutenção do corpo,
Na Idade Média e ainda no Renascimento, tanto os seres quanto as coisas eram percebidos como uma continuidade. A cosmovisão era inteiramente teocêntrica. A partir do século XVII, há uma separação entre corpo humano e Natureza.  Os corpos são imaginados independentemente da influência dos planetas, das forças ocultas, dos amuletos ou objetos precisos. Não que sejam definitivamente descartadas as crenças, como as da medicina popular, dos curandeiros ou feiticeiros do campo, mas um conflito de cultura se aviva com a Renascença, onde o corpo se singulariza.


Ler alguns artigos desses volumes, portanto, nos dá mais instrumentos para libertar nossos corpos de amarras tão antigas, compreendendo os valores e os motivos de nossos hábitos e nossos conceitos.

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